9/11/2012
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07h12
O som distante de tiros perturbava a paz matinal de um vale ensolarado,
tropicalmente brilhante. Uma jovem de cabelos longos bloqueava a trilha.
Ela tinha uma metralhadora nas mãos. O acrônimo em sua lapela a
identificava como integrante das Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (Farc). Ela nos instruiu a parar.
Eu estava acompanhado por Julio, um amigo de Bogotá, e por um guia local
que nos havia conduzido em nossa expedição à fonte do maior dos rios
colombianos, o Magdalena. Visitar sua fonte era a culminação de uma
jornada que passei anos preparando. Mas foi no trecho final da viagem
que comecei a ter noção do verdadeiro perigo.
Os três últimos dias haviam sido de medo constante. A viagem a cavalo
por uma trilha florestal íngreme e escorregadia já seria assustadora o
bastante, mas foi a descoberta, depois de chegarmos às montanhas, de que
as Farc estavam na região que tornou a tensão quase insuportável.
Jenny, a guerrilheira que nos deteve, não foi capaz de nos informar o
que acontecia. Tentamos puxar conversa com ela. Como no caso da maioria
de seus companheiros, Jenny não parecia ter muito mais de 18 anos, mas
revelou que era parte das Farc há mais de 13 anos. Ela provavelmente é
um dos muitos membros do grupo que foram sequestrados de suas famílias
quando crianças.
O subcomandante enfim chegou, pedindo desculpas pela demora e alegando
que estava treinando tiro. Depois de uma troca de gentilezas, ele
delineou os planos das Farc para a construção de um centro de recepção
de visitantes, ampliar e melhorar a trilha que estávamos seguindo e para
tornar a região mais atraente para os turistas.
Depois, perguntou se eu sabia um pouco de inglês. Quando admiti conhecer
razoavelmente o idioma, pareceu deliciado. "Precisamos de alguém que
traduza um pequeno texto para nós. Você poderia ajudar?"
"Claro", respondi, lisonjeado por ter sido confundido com um espanhol e
quase feliz por poder ajudar. Era um manual de montagem de uma mira
laser. Confessei que "meu inglês técnico não é grande coisa".
"Não se preocupe", o subcomandante me assegurou. "Mostraremos como uma arma funciona e o ajudaremos com os termos técnicos."
Fomos conduzidos a uma choupana com linda vista do vale, e o absurdo da
situação em que nos colocáramos começou a substituir o medo. Julio
propôs escrever minha tradução, enquanto Jenny me ensinava os termos
técnicos corretos para as diversas partes da metralhadora. Logo percebi
que não fazia ideia sobre o que o panfleto dizia.
Jenny achou que poderia ajudar se me mostrasse a mira. Impaciente demais
para aguardar que eu decifrasse as instruções, ela tentou montar os
diversos componentes de modo desajeitado.
Trecho do rio Magdalena, na Colômbia
DE PERTO
Por fim começamos a fazer progresso, apesar de visitas de amigas
sorridentes de Jenny que queriam conversar conosco. Havia selva na
Espanha? Que tipo de comida costumávamos comer?
Elas começaram a me dar uma receita de um doce feito com cana-de-açúcar e
pênis de boi quando Marlon, namorado de Jenny, apareceu para dar um ar
inquietante seriedade à situação. "Pessoalmente", disse, contemplando a
mira, "prefiro matar pessoas de perto, de onde possa ver seus rostos.
Mas a beleza dessa engenhoca é que ela permite tiro preciso a 150 m, e
no escuro".
Depois disso, tudo que eu conseguia pensar era em deixar a área o mais
cedo possível. "A lição de casa está pronta", disse Julio, depois que eu
corri a traduzir as duas páginas finais do manual sem conferir o que
ditava.
O subcomandante nos agradeceu muito, e pedi desculpas por possíveis
erros. Ele disse que esperava nos ver de novo um dia. "Se vocês não se
incomodarem em dormir em nossas humildes cabanas de folhas e galhos."
Nós o agradecemos pelo tentador convite, e depois retomamos o caminho da
montanha.
"Salvamos nossas consciências", Julio sussurrou assim que saímos da
vista dos guerrilheiros, explicando que havia alterado ligeiramente
minha tradução para tornar o texto, já confuso, completamente inútil.
Por sorte ele havia percebido o que eu desconsiderei por medo, e sua
consciência o impediu de ajudar pessoas que causaram tamanho sofrimento e
terror na Colômbia -traficantes de drogas, sequestradores de crianças.
Pelos dias seguintes, fiquei remoendo essas implicações, até que, quando
chegamos a Bogotá, notícias sobre a área do incidente me fizeram ver
todo o acontecido sob outra luz.
Fomos informados pelo nosso guia de que o Exército havia ocupado a
região e provavelmente matado os guerrilheiros com quem havíamos
conversado. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Jenny tentando
fazer a mira a laser funcionar e depois morrendo em defesa de uma causa
tão confusa que chega a abarcar até mesmo a promoção do turismo.
Os meus sentimentos quanto ao que fiz de certo ou errado por traduzir
algo para as Farc foram substituídos por algo diferente: uma imensa
sensação de piedade.
Fonte:Folha de São Paulo - MICHAEL JACOBS
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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